Não deixar cair no esquecimento o 25 de novembro de 2022, data em que ocorreu o ataque a tiros em duas escolas de Aracruz. Esse foi o objetivo da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos realizada nesta segunda-feira (25). Exatamente dois anos depois, familiares, profissionais das unidades atingidas e deputados fizeram uma mobilização para que o crime seja investigado a fundo. Para os participantes, o ato brutal tem cunho ideológico nazista.
Proponente da reunião, a presidente do colegiado, Camila Valadão (Psol), relembrou que o atentado foi cometido por um ex-aluno da Escola Estadual Primo Bitti, com o qual foram apreendidos materiais ligados à ideologia, como uma suástica. A deputada frisou que os tiros partiram de uma arma de fogo do pai, um policial militar, e acometeram três professoras e uma aluna.
“É sempre importante a gente lembrar os nomes (das vítimas) na perspectiva de prestar solidariedade” no sentido de “construir processos para que isso não se repita e para que a gente possa sempre criar estratégias de solidariedade e mitigação do que aconteceu”, analisou a parlamentar sobre o “crime de ódio” de “caráter nazista”, levado a cabo pelo adolescente.
Membro da comissão, João Coser e a vice-presidente, Iriny Lopes (ambos do PT), deram ênfase aos contornos do massacre. Para a petista, o atentado tinha “endereço certo”: as mulheres. “Um crime cometido pela motivação da visão nazista da sociedade”, considerou. A parlamentar criticou a perícia realizada pela polícia e disse que há “indícios fortes” de células nazistas no estado.
“Precisa ser uma pessoa de altíssima qualificação em tiro para cometer, no tempo que ele cometeu, os quatro assassinatos”, ilustrou. Por conta disso, a deputada descarta se tratar de um caso isolado. “Isso significa que não foi como muitos querem dizer, inclusive sua defesa, um surto. Essa pessoa é treinada”, defendeu.
A vice do colegiado sugeriu que a comissão oficie à pasta de Segurança Pública para pedir todas as informações acerca do caso e solicite a presença do secretário Leonardo Damasceno para atualizar o andamento.
O colega de bancada deu ênfase à cobertura da grande mídia, que estaria voltada à divulgação do desastre, se abstendo de procurar soluções e políticas públicas mais eficientes. “Ela não constrói. Impressionante como nós temos imprensa submissa ao capital”, julgou.
“Este crime traz uma característica ideológica muito séria, que é o nazismo”, disse Grayce Lourdes Amboss, mãe de Flávia Amboss, uma das mulheres assassinadas. “Infelizmente nós mulheres estamos sendo dizimadas, não sei porquê. O gênero masculino resolveu dizimar o gênero feminino”, completou. Ela também confirmou haver células nazistas capixabas.
Visivelmente emocionada, Grayce contou que as famílias que perderam seus entes estão, cada uma a seu jeito, aprendendo a lidar com a ausência das vítimas e tentando digerir o acontecimento dois anos depois. “Realmente o dia de hoje é um dia muito difícil”, resumiu a psicóloga.
A professora de Língua Portuguesa da Escola Primo Bitti Leilane Moreira reforçou que a morte das três colegas foi motivada pelo fato de serem mulheres e professoras. De acordo com a docente, no Brasil e no mundo, teses de estudiosos comprovam que os crimes ocorridos nessas instituições são explicados pela misoginia, racismo e supremacismo.
Ela reproduziu trecho de um material preparado pelo Ministério da Educação (MEC) sobre ataque às escolas no Brasil. “Em relação às características comuns dos perpetradores, são do sexo masculino, geralmente brancos, que possuem identificação ou afinidade com ideologias extremistas que promovem discursos discriminatórios, de eliminação do diferente e contraditórios à coesão social, especialmente aqueles ligados ao supremacismo, ao racismo e à misoginia”.
Associação política
Participantes da audiência associaram o crime ocorrido há dois anos ao contexto político de ascensão do que classificam como extrema direita no Brasil e até no mundo. Essa foi a análise feita pela vereadora de Vitória eleita pelo Psol Ana Paula Rocha, professora da rede estadual de ensino há mais de vinte anos.
Usando de analogia, a convidada disse que o ocorrido em Aracruz se assemelha ao crime de feminicídio, cujos abusadores são sempre tratados como “monstros” pela mídia, quando na verdade não o são. “A gente não está falando de monstros, a gente está falando de um projeto político, a gente está falando de pessoas que são disputadas e se identificam com o projeto político que passa pela misoginia e pelo extermínio de mulheres”, articulou.
“A gente tem que primeiro deixar de achar que esses ataques a escolas, a mulheres e a professoras são fatos isolados. A gente viu uma crescente no Brasil, no último período, muito em acordo com o próprio crescimento de projetos políticos de extrema direita que nos elegem como alvo”, salientou.
Nesse contexto, a professora afirmou que as escolas são atacadas em vários sentidos, ao citar ações que incluem o estabelecimento do ensino militar, o movimento Escola Sem Partido, o homeschooling, e o empreendedorismo nos currículos. Ela também quer a responsabilização criminal do pai do ex-aluno. “Ele (o jovem) foi treinado pelo pai”, afirmou.
O coordenador nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Heider José Boza, foi outro a reforçar o caráter político do massacre. “A conversa hoje é sobre isso, é sobre o fascismo no Brasil”, sintetizou. “A gente vê agora uma volta muito forte de um dos expoentes desse novo momento do fascismo no Brasil, que é nos Estados Unidos, a eleição do Trump”, projetou.
“A gente entende que o debate é político, então o enfrentamento tem que ser no campo da política, da organização”. O coordenador cobrou um pedido de retratação pública do governador Casagrande (PSB), “para mostrar que ele não é como os nossos algozes”, inclusive pelo fato de a arma usada no crime ser propriedade do Estado.
Heider Boza também propôs a dispensa do militar da corporação policial, pai do jovem, e sua criminalização na Justiça. “Ele precisa ser exonerado do cargo em que ele está, ele ainda não foi, ele está afastado por licença médica desde a ocasião (...) e ser jugado à altura”. Por fim, sugeriu a construção de um memorial às vítimas de crimes de ódio no estado.
Para Gilmar Ferreira, representante da Comissão de Promoção da Dignidade da Pessoa Humana, alguém ensinou o jovem e, assim como a deputada Iriny Lopes, criticou a forma como foi feita a perícia. “O governador sabe, se apura com rigor investigativo, vai apurar dentro da estrutura da Segurança Pública e lá pode encontrar não só o discurso, mas a célula fascista”.
Livro
Diversos presentes ao auditório Hermógenes Lima Fonseca usavam camisas do (MAB), do qual uma das professoras mortas, Flávia Amboss Merçon Leonardo, fazia parte. Ao fim da reunião, foi feito o pré-lançamento do livro escrito por ela.
A obra “Imprensados no tempo da crise: A gestão das afetações no desastre da Samarco (Vale e BHP Billiton) e a crise como contexto no território tradicionalmente ocupado na foz sul do Rio Doce” é oriunda de uma tese de doutorado da professora.
A reunião também teve a participação da defensora pública Mariana Andrade Sobral e da pedagoga da Escola Estadual Primo Bitti Karla Pissinatte.
O crime e a indenização
Em 25 de novembro de 2022 um adolescente invadiu duas escolas (uma pública e outra particular) no bairro Coqueiral de Aracruz, em Aracruz. Ele disparou contra alunos e professores, causando o ferimento de 10 pessoas e a morte de quatro: as professoras Maria Penha Pereira de Melo Banhos (48), Cybelle Passos Bezerra (45), Flavia Amboss Merçon Leonardo (36), além da estudante Selena Zagrillo (12).
Em julho do ano passado os deputados aprovaram o Projeto de Lei (PL) 558/2023, do governo, que pedia a abertura de crédito especial no valor de R$ 2,3 milhões em favor da Procuradoria-Geral do Estado (PGE). O objetivo era inserir a verba no orçamento em vigor para indenizar vítimas da Escola Estadual Primo Bitti, uma das unidades atingidas pelo crime.
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